PADRE PROSPERINO GALLIPOLI DE MONTESCAGLIOSO: UM CATERPILLAR EM MOÇAMBIQUE
de Padre Francesco Monticchio
DO LIVRO: DO LADO DOS ÚLTIMOS – PADRE PROSPERINO EM MOÇAMBIQUE
ORGANIZAÇÃO DE ENRICO LUZZATI
ZAMONORANI EDITOR - 2009

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18 de Agosto de 1971
        
         Quando cheguei ao aeroporto de Quelimane, cidade capital da província da Zambézia (região centro-norte de Moçambique), frei Prosperino Gallipoli de Montescaglioso, ou simplesmente “Pró”, não estava.
         Eu tinha-o conhecido na Itália alguns anos antes. Tinha vindo ele a férias e realizou um encontro connosco, estudantes de teologia.
         Fazia-me um estranho efeito aquele missionário. A comunicação imediata, a alegria com que comunicava as suas experiências, o facto de se sentir “esperança” para a gente com quem trabalhava, em tudo me parecia haver algo de exagerado.
         Nesse tempo, entre nós, os frades, não se tinha em grande consideração a possibilidade de investir a própria vida na missão “Ad Gentes” na Zambézia Inferior em Moçambique.
         Nos últimos 10 anos haviam partido apenas dois missionários. A missão era considerada como um empenho de segunda categoria. Eu era um desses e, assim, não tomava muito a sério o assunto quando Pró procurava envolver-nos a todos sobre a beleza e riqueza de viver a própria vida numa “outra cultura”, anunciando Cristo Salvador e novo estímulo para qualquer povo, língua e cultura.
         Não podia, porém, subtrair-me ao fascínio que dentro de mim suscitava aquilo que ele fazia e o modo, segundo o qual, se tornava presente e operante em Moçambique. Havia nele qualquer coisa de “especial” que os outros missionários, embora sempre heróis, não possuíam.
         O denominativo “Pró” deriva da assinatura com a qual ele concluía o folheto eclesiástico policopiado Acção Missionária, pensado, redigido, escrito e comentado só por ele e expedido muito irregularmente aos confrades que viviam em Puglia (Itália). Talvez entre os velhos papéis do arquivo provincial se poderá encontrar alguma cópia.
         Aquele denominativo a nós, rapazes, fazia o efeito de algo de heróico e de aventura espiritual exótica.
         Porém, a lembrança daquele encontro ficou e marcou-me por dentro. Eis porque, chegado a Quelimane, também eu, missionário como ele, esperava que ali me viesse acolher. Mas, não estava ali!
         O primeiro e verdadeiro encontro com Pró aconteceu no Luabo, uma vila industrial, sede da empresa  açucareira Sena Sugar Estates, na margem do rio Zambeze e a 70 Km da sua foz.
         Era a minha primeira Missão! Naquele dia nós, jovens missionários, e éramos 7, marcamos uma reunião para discernir sobre a renovação do quadro directivo da Missão, a qual viria a acontecer algumas semanas depois com a celebração do capítulo electivo, e ainda para dar corpo a um novo programa da nossa acção missionária.
         Convidamos Pró para nela participar, único missionário da “velha guarda”, porque o considerávamos à altura do nosso “complot”.
         Na tarde desse dia um confrade da nossa Missão organizou um desafio de futebol com uma equipa da povoação de Perira. Tinha carregado os rapazes (jogadores) no jeep e iniciou a manobra de marcha-atrás para sair, sob a orientação de Pró que, recuando sem olhar para trás, ficou entalado entre um jeep estacionado e aquele que transportava os rapazes. E assim fracturou o fémur. Ficou então connosco por mais alguns dias.
         Não obstante o seu sofrimento, cantava connosco a nossa juventude, a nossa esperança, a vontade de viver e de estar presente naquele território, (colónia portuguesa desde que o navegador Vasco da Gama atracou com o poeta Luís de Camões na Ilha de Moçambique), junto a um povo sofrido, que aspirava à independência política.
         Eu escutava da sua boca histórias de afrontas e injustiças, aventuras vividas com os colonos portugueses e com a gente moçambicana, impulsionada por ele a despertar o coração para a não-aceitação de uma situação de secular submissão; a reagir ao “status quo”; a fazer sentir que alguma coisa podia mudar. «Ser colonizado, dizia ele, não é digno de um povo. Também os portugueses deviam dar-se conta de que um povo não deve dominar um outro povo. O Missionário deve ser consciência crítica, deve ser Igreja para todos».
         Escutava ainda as histórias de uma Igreja parada na mentalidade preconciliar, de um episcopado que ainda não tinha assumido os novos impulsos transformadores vindos do Concílio Vaticano II e que tinham fecundado a humanidade, soprando ventos de renovação e transformação do homem.
         Em Moçambique, ainda não era possível rezar e pregar nas línguas “Bantu”. Só a língua portuguesa era veículo do anúncio evangélico. «Falar a língua local “bantu” – dizia ele – era como abrir o cofre da riqueza de um povo».
         Entre um e outro canto estudantil em uso na Itália durante os anos 60 e 70 contava-nos o quanto teve de lutar para poder abrir a primeira escola secundária numa missão, precisamente na sua, de Morrumbala, um distrito situado no coração da Zambézia. Desde o Governador ao Bispo, todos julgavam pouco “prudente” abrir uma escola secundária só para negros. Mas, o seu saber-fazer as coisas, a sua dialéctica, ajudaram-no a encontrar “razões” para convencer, agir e ultrapassar os obstáculos. Contactando todos os colonos brancos (pequenos comerciantes espalhados pelo mato de Morrumbala, pequenos e médios agricultores e criadores de gado, em qualquer dos casos constituindo uma verdadeira rede económica capaz de produzir e comercializar para si e para os outros e, de fazer circular produtos e dinheiro), procurou convencê-los da necessidade de pedir, para os seus próprios filhos, a instituição de uma escola secundária num local próximo das suas residências. Só desta forma conseguiu obter a autorização de abrir, na Missão, uma escola e um lar para os estudantes onde, rapazes e raparigas, negros e brancos, frequentavam a mesma escola, partilhavam a mesma mesa e viviam juntos os tempos de trabalho e de descanso.
         Recordo-me da sua hilaridade de então, da sua capacidade de retorno às suas origens, à história da sua família, do seu avô José que queria fazer dele um empresário… e, por isso, se opunha à sua entrada no seminário capuchinho em 1943… (e aqui, uma das suas gargalhadas!). Com este seu avô, José Tonini, tinha crescido depois da morte do pai, Próspero Gallipoli que, aos 19 anos, tinha emigrado para a América. Regressando, alguns anos depois a Montescaglioso, casou-se com Marietta Tonini. Deste casamento nasceram 5 filhos: Lillina, com a qual frei Prosperino manteve sempre um relacionamento privilegiado, Rocco Luigi (Prosperino em religião), José, Anna e Donato.
         A família tinha uma excelente cantina de vinhos e licores. À morte do pai, em 1938, quando Prosperino tinha apenas 6 anos, toda a família foi acolhida pelo avô materno, José Tonini, que  geria  um moinho e uma empresa de autocarros.     
         Os Tonini tinham chegado a Montescaglioso vindos de Monopoli, no distrito de Bari. José Tonini casou-se com Maria Basílio, da qual teve duas filhas: Carmela e Marietta. Esta foi a mãe de Prosperino.
         A família Tonini era muito próxima aos frades capuchinhos do convento de Montescagolioso e eram também franciscanos seculares. A mãe de Prosperino frequentava o convento e, gerindo o trabalho no moinho do pai, costumava oferecer muitos produtos aos frades, com os quais tinha uma grande familiaridade. Por sua vez, também os frades dos conventos vizinhos, ou mesmo dos mais distantes, vinham ao moinho dos Tonini fornecer-se de mantimentos, durante os tempos da guerra. O avô Tonini foi sempre muito generoso e, não raramente corria algum perigo perante os controles da polícia. Faleceu em 1948, quando Prosperino já estava no convento.
         Com o mesmo tom de mofa e irónico, Pró contava as histórias da sua juventude durante o tempo do seminário, das partidas que pregava aos seus companheiros e superiores, dos perigos que corria de ser expulso do seminário e, da estima que nutria pelos seus formadores e pelos frades que lhe tinham dado tudo quanto puderam.
         Tocava a filarmónica (tomando, já então, a pose de um grande artista!) e cantava connosco: Quant’ è belle lu primo amore, O bella ciao, Quel mazzolin di fiori, Dimmi come ti chiami, Sant’Antonio allu desertu e muitos outros ainda.
         Porém nos momentos de repouso forçado, reflectia também sobre como ser missionário; sobre o sentido do anúncio de Cristo, único capaz de pôr o homem em marcha num processo de desenvolvimento e formaçao autentica, no despertar da auto-consciência. Sobretudo, interrogava-se frequentemente sobre como ser missionário capuchinho no contexto sócio-político vigente, não só individualmente, mas também em grupo como irmãos, chamados e enviados a testemunhar Cristo numa Igreja que, inserida numa nova sociedade, sentia a exigência de anunciar as novas relações de solidariedade e de partilha das próprias riquezas.
         Foi durante estes dias que chegamos a compreender, que só Prosperino, melhor que ninguém  e, da melhor forma possível, poderia interpretar as novas perspectivas do Concílio e colocá-las na grande tradição da experiência missionária, acumulada ao longo dos anos

Pró, superior da Missão Capuchinha da Zambézia

         No capítulo de 1971 Pró foi eleito Superior Regular da Missão.
Sob a sua orientação os missionários traçaram as linhas de uma nova evangelização como resposta às reais necessidades da gente, como proposta a estimular e despertar as energias mais recônditas da cultura, como elaboração dos impulsos humanos e espirituais que Cristo propõe com a sua vida e a sua palavra.
         Não mais uma catequese teórica, vinda do topo, mas uma evangelização que, antes de mais, empenhasse o missionário no conhecimento da língua, das tradições religiosas, culturais e sociais do povo, em “fazer-se” um do povo, a fim de assumir os seus valores e levá-los ao pleno desenvolvimento através da mensagem evangélica.
         A primeira consequência desta escolha foi que, os últimos frades acabados de chegar à Missão, deviam dedicar-se ao estudo de uma língua local “bantu”, ou seja, uma das várias línguas que se falam na área da missão da Zambézia Inferior: frei Francesco Monticchio em Inhangoma e fra Benito De Caro a Chemba para estudar a língua Chisena e frei Camillo Campanella em Mocuba, para estudar a língua Etxuabo.
         Prósperino pediu-me para ficar com ele em Quelimane por alguns dias a fim de organizar o arquivo da Missão. Considerei a coisa como um grande presente, pela oportunidade que me foi dada de o conhecer melhor e de ler a história da Missão, através dos documentos conservados em arquivo.
         Um dia aconteceu um imprevisto. De Morrumbala veio a Quelimane o frei Cherubino Schiavone de Rutigliano para despachar assuntos da missão. O seu jeep sofreu uma avaria, mas o frei Cherubino devia necessariamente regressar a Morrumbala. Pró pediu-me, então, para acompanhá-lo e voltar a Quelimane no mesmo dia. Era, por sinal, o meu primeiro dia de condução automóvel em Moçambique.
         A ida até foi fácil mas, no retorno, meti-me erradamente por outra estrada andando completamente em direcção contrária e perdi-me na floresta. Chegada a noite, apanhei um buraco. Apagaram-se as luzes e, caminhando fora da “picada” acabei por caír num fosso, enterrando o jeep.
Assaltou-me o medo de passar a noite ali, sozinho, no jeep. Fechei as janelinhas ... imaginei-me assaltado por leões que rondavam farejando o carro. No silêncio mais profundo da floresta e na confusão mais barulhenta dos meus fantasmas, senti que me saudavam: «Boa noite, senhor padre!» Não consegui abafar um grito desesperado. «Padre, não grite!» disseram-me quatro homens. E continuaram: «Somos nós! Tu não és o P. Carlo Patano de Triggiano, mas nós conhecemos o ruído deste jeep. Ele é do P. Carlo. Como é que está contigo? Mas nós viemos ajudar-te!».
         Informados do que acontecera, disseram-me para ficar tranquilo e que esperasse sereno o seu regresso. Passadas duas longas horas, quando eu já não contava mais, como certa, a sua promessa, chegaram com um prato fumegante de arroz branquinho, uma galinha assada com piripiri e uma manta, dizendo: «Padre, come alguma coisa, cobre-te e dorme. Amanhã de manhã, apenas desponte o sol, viremos e tiraremos o jeep do fosso». E foram-se embora!
         Passei toda a noite a pensar: “Mas que gente é esta? São assim os moçambicanos? Tinham-me dito bem outras coisas!...”
         Pela manhã, ao romper do dia, vieram 10 homens e várias mulheres com as suas crianças. Foi uma festa!... «Mwakhuta? Mwadokerwa?» perguntaram-me. Isto é: Comeste bem? Dormiste bem?
         Foi grande a minha admiração e até confusão, pois não me conheciam… Mas só porque reconheceram o jeep do seu P. Carlos, manifestaram tanta atenção e interesse, benevolência e hospitalidade. Desenrasquei-me como pude, para me fazer entender por eles. Mas aquelas duas palavras em chisena, entraram no meu coração.
         Agarraram o jeep em peso e colocaram-no sobre a estrada. Um empurrão e o jeep arrancou! Parei, no entanto, para os olhar a todos nos olhos… «Takhuta! Tinaonana ntsiku inango!»  Isto é: obrigado, até mais ver!
         Eu nunca mais os vi. Porém, algo aconteceu em mim. Este foi um acontecimento que marcou a minha vida e as minhas relações com o povo moçambicano.
         Algumas horas mais tarde cheguei a Quelimane. Pró esperava-me impaciente à entrada de casa. Estava nervoso e um tanto arrependido da confiança que, em mim, havia depositado. Contei-lhe então a minha aventura. E quando comecei a falar-lhe da ajuda generosa e gratuita recebida tão espontaneamente daquela gente, a serenidade transformou o seu rosto. Tranquilizou-se e disse: «Agora sim! Ficaste já a conhecer o sabor da  hospitalidade  africana!  Nunca  mais esqueças a oferta que te fizeram, as palavras da sua língua e os gestos do seu coração!».
         Desde aquele momento fui percebendo o mundo humano no qual tinha “desembarcado”. A minha vida recheava-se de novas dimensões.
         Pró  bem conhecia o sabor de certas coisas!

Uma longa viajem
        
         Depois de uma dezena de dias de duro trabalho e de estudo da gramática chisena, língua que Pró falava fluentemente, tivemos tempo e oportunidade de fazer, juntos, uma viagem por toda a área da nossa Missão. Foi uma peregrinação de alguns dias num jeep todo escangalhado: não tinha motor de arranque, nem buzina.
         Esta era substituída por uma corneta, na qual eu devia soprar forte, de cada vez que devíamos ultrapassar outro veículo. E se algum camião não abrandava a marcha, ao toque normal, para deixar-nos passar, Pró gritava: “Toca mais forte”! E lá atirava mais uma imprecação por causa do pó que devíamos engolir e do ruído imenso, mesmo estrondoso, da carroçaria do nosso jeep e do veículo que nos precedia.
         O motor de arranque tinha sido tranquilamente substituído pelo costumado e necessário empurrão, à mão, (chova-chova, como se diz naquelas terras) para arrancar. “Coisa de missionários”!
         Nos momentos livres destes afazeres, passava-se uma vista de olhos sobre a gramática da língua chisena: sufixos, prefixos, infixos, pronomes pessoais, possessivos e reflexos, verbos, etc. etc.
         O estudo era intercalado por contos, factos e histórias da Missão, dos seus projectos para a renovação da vida fraterna e das relações dos frades entre si. Segundo o seu modo de  ver,  o ponto de partida de qualquer tipo de renovação seria a criação de um fundo comum e a programação conjunta dos projectos e obras a realizar em cada missão. O fundo comum recolheria todas as entradas e, dele, cada um receberia conforme as suas necessidades. A programação dos projectos das missões favoreceria o desenvolvimento orgânico de cada uma delas, segundo uma escala de intervenções repartidas no tempo.
         Tudo isto tinha em vista a vivência das dimensões mais profundas dos ideais cristãos e franciscanos da pobreza capuchinha, dentro da partilha de bens; da fraternidade como “um vir ao encontro” entre os frades mais capazes de angariar fundos e aqueles menos capazes; do testemunho de vida cristã como fraternidade e não cada um por sua conta e risco; do libertar-se de certas tarefas materiais que roubariam tempo necessário à urgência do anúncio evangélico e à necessária oração.
         As jornadas de viagem passavam-se com uma tabela de marcha verdadeiramente espartana: “Hoje vamos dormir em Mocuba… Hoje vamos ao Chire… Amanhã a Morrumbala...Depois de amanhã a Mopeia…”
         O importante era chegar a uma missão para dormir, porque, dizia ele usando um provérbio em língua chisena mas aplicando-o em sentido contrário à nossa situação: “mwanamphawi anafuna pyakudya, panagona ananyeredzera gwekha! Isto é: o órfão tem necessidade de comida; o lugar para dormir procura-o sozinho.
         Impressionava-me esta sua vontade de chegar a todo o lado, marcar presença para ajudar, para infundir coragem, para estimular com palavras e modos, por vezes “duros”, mas eficazes.
         Às minhas observações sobre o seu impeto ou sobre a “ingenuidade” das suas intervenções respondia assim: «Quando o moçambicano compreendeu que lhe queres bem e que nunca fechas o coração à compreensão, à partilha, ao ir-lhe ao encontro em certas emergências nas quais se encontrou… podes ser duro como o sou eu. Tu, hoje, não podes fazer assim e talvez te escandalizes de certos comportamentos meus, mas eu estou aqui há 13 anos e tive a sorte de ter entrado no coração das pessoas. Elas mesmas me permitem de ser forte no empurrá-los para a frente e, sem negar a sua cultura, aceitar quanto de bom, tu e eu lhes possamos oferecer da nossa maneira de ser».
         Caminhava-se continuamente. As paragens faziam-se junto das escolas nas quais Prosperino controlava o funcionamento, verificava a presença do professor e o número dos alunos. Dirigia-lhes palavras de “fogo” sobre a necessidade de estudar e de uma meta a atingir; prometia então, que os melhores alunos seriam enviados depois a frequentar a escola secundária de Morrumbala.
         Outras paragens faziam-se nas pequenas lojas comerciais dos portugueses espalhadas ao longo da estrada, onde se encontrava com os seus amigos e pais dos rapazes que estudavam em Morrumbala, a sua Missão. Bebia-se uma cerveja fresca ou se tomava uma refeição ligeira junto destes amigos e, depois se retomava a caminhada.
         Por vezes a pausa para almoço era mais longa. Acontecia sempre que o professor ou o catequista nos convidava a almoçar com eles. Os tempos eram então mais longos, porque mais complicados eram os trabalhos de preparação do almoço. A mulher do professor começava por descascar o arroz no pilão, enquanto o filho mais pequeno corria atrás da galinha e a depenava.
         «Aqui o tempo pára – dizia Pró – mas repara com quanta generosidade a gente dá quanto possui». Entretanto surgiam as longas conversas sobre o andamento do tempo, sobre as colheitas, a venda dos produtos excedentes, os preços praticados pelos comerciantes portugueses, sobre acontecimentos da aldeia, as informações sobre o estado de saúde e doenças de outros amigos e conhecidos, etc. etc., até que chegasse um belo prato de arroz branco fumegante e uma galinha assada ao piri-piri.
         Fazia-me impressão aquele seu tagarelar de tudo, de todos e com todos. Para ele era fácil encontrar o adequado tema da conversa com os portugueses que, geralmente se lamentavam dos negros e, com os moçambicanos amargurados, humilhados e ofendidos devido ao comportamento dos brancos. A estes, pedia colaboração no sentido de assumirem os alunos negros durante as férias, a fim de que pudessem ganhar algo necessário para comprar livros e cadernos escolares; aos negros, recomendava de aprender dos brancos a gerência de uma pequena loja e a capacidade de agir com destreza naquele mundo bem diferente do deles.
         Alguns dias depois fomos a Inhangoma, uma missão situada para além do rio Chire, na província de Tete e a 80 km. de Morrumbala. Impressionou-me o relacionamento franco e fraterno de Pró com as Irmãs desta missão. Parecia que tivesse vivido sempre com elas. E a elas me confiou por 5 meses com a finalidade de estudar, localmente, a língua chisena. Quis ver o lugar do meu “deserto” espiritual, perdido numa aldeia, longe da missão. Tinha, para mim, um quarto de 4x4x2,5 metros. O catequista Lourenço proveria às minhas necessidades e deslocações; Verónica, sua mulher, cuidaria da alimentação. No momento da despedida disse-me: «Funcionar-te-ão apenas os olhos, os ouvidos e…o coração!» E foi-se embora.
         E o “deserto-silêncio” foi verdadeiramente grande! Em Fevereiro adoeci. Era a malária. Mas eu não sabia que doença fosse. As Irmãs cuidaram-me amorosamente.
         Quando a notícia chegou até Pró, ele veio buscar-me. «Mwacerwa?» perguntou. «Ndacherwapenombo imwe!» respondi. (Isto é: estás bem? Estou bem, não sei tu!)
         Olhamo-nos: eu, com olhos de “herói” ferido, e ele com olhos de “magnânimo” benfeitor! E disse: «Agora tiveste o baptismo de África. Já descobriste que o chisena não é barulho, mas som melodioso para os teus ouvidos e pleno de novos significados para o coração! O silêncio de palavras da boca te fez falar a linguagem do coração; a inactividade e impotência levaram-te a descobrir a linguagem do olhar afectivo e a malária temperou o teu corpo. Já agora estás mergulhado! Recebeste o clássico baptismo africano, o paludismo»!
 Bolas! dizia-me a mim próprio. Afinal também ele viveu as mesmas sensações que eu. Mas sinto que sou bem diferente dele!
         Dirigiu um profundo agradecimento às Irmãs e fomos embora.
         Pela frente, ainda uma longa viagem! E, de uma assentada, entramos na área da missão de Morrumbala, a “sua” missão. À medida que nos aproximávamos, notei que se tornava menos comunicativo, evasivo, distante, retraído, como se alguma coisa lhe faltasse ou estivesse vivendo o triste pressentimento de que algo dos seus projectos não se realizasse segundo os seus planos. Ou, mais ainda, como se estivesse caminhando em direcção a alguma coisa que se lhe escapava das mãos, que jà não seria mais sua!
         A certa altura, disse quase só de si para si: «Frei Fortunato perde tempo! Não me interessa a estética. Só há necessidade de eficiência!». Mas, interroguei-me, tê-lo-á dito mesmo a respeito de frei Fortunato? É porque não o conhece, dizia eu, no meu íntimo.
         Mas Pró era assim! Não suportava as tentativas, os esforços de adaptação de um novo missionário. Para ele era como se, de repente, devesse saber tanto quanto ele sabia, depois de treze anos de missão!
         Pró realizava o essencial. A seu ver o importante era produzir, fazer funcionar tudo ao máximo com um mínimo de estruturas. Não, porque não apreciasse a perfeição de quanto se estava realizando, mas porque lhe interessava algo diferente e, quem não fazia esse “diferente”, a seu parecer perdia tempo e, por isso, o apelidava de “poeta”.
         A missão de Morrumbala tinha sido construída pelo padre Edoardo Guastadisegni de Bari; as construções alinhavam-se ordenadas e solenes. Este frade, de desordenado, tinha somente o apelido, “Estragadesenhos”, mas era um óptimo arquitecto urbanístico.
         Quando chegou o “furacão” frei Prosperino Gallipoli de Montescaglioso, a missão cresceu depressa, numa forma tosca, mesmo feita à pressa. O não-acabado era visível em cada casa, em cada projecto e na planimetria geral: serração aqui; à direita o forno; a carpintaria acolá; abaixo o moinho; à esquerda o ambulatório; mais acima o lar masculino; do outro lado, junto à casa das Irmãs, o lar feminino; mais além, longe das casas, a oficina de mecânica; lá mais adiante, longe dos motores, a escola secundária; ao centro o refeitório dos estudantes; mais abaixo ainda, ao lado da estrada, o campo de futebol!
         Era de facto necessária a paciência de frei Fortunato Simone de Rutigliano e de frei Fedele Bartolomeo de Cirigliano para tornar mais ameno e acolhedor o ambiente da Missão de Morrumbala, construída sobre a bela colina Ntendere, a colina da Paz.
         O seu estado de humor oscilava, mas retomava a sua costumada conversa quando se chegava aos pontos nevrálgicos do percurso da sua Missão: «Eis a escola central de Domingos, uma escola em alvenaria com duas grandes salas de aula e uma casa anexa para professores-catequistas».
         Toda a missão, sob o ponto de vista académico ou de escolaridade estava dividida em 6 zonas. Cada uma tinha uma escola central onde afluíam os melhores estudantes da 4ª classe, (cerca de 200 por ano) último ano da escola  primária. Na escola central ensinavam dois professores, os melhores do quadro, a fim de prepararem bem os alunos para os exames finais. Na Morrumbala de então, um distrito de cerca de 13.000 km quadrados e com mais de 350.000 habitantes, Pró tinha criado uma densa rede escolar, umas sessenta escolas ou talvez mais ainda. Os professores, segundo o Acordo Missionário entre o Estado Português e a Igreja, eram também catequistas e as escolas, por sua vez, eram Escolas-Capelas. Os professores-catequistas eram os nós, isto é, os laços de ligação e presença na densa teia de desenvolvimento e de evangelização. Pró tinha interpretado, organizado e desempenhado  bem  este papel da expansão social e cristã da Missão.
         Avançando um pouco mais à frente dizia-me: «Aqui, nesta floresta, tivemos autorização para o corte de troncos para fornecer a serração e a carpintaria da Missão. Acolá está o velho tractor (não tinha sequer uma peça da carroçaria; só motor, rodas e assento), que serve para arrastar os troncos. Esta “equipe” é especializada para este trabalho. São troncos de umbila, umbawa, chambiri, pau-rosa, channfuta, pau-preto, uma floresta riquíssima. O corte é feito com os necessários cuidados a fim evitar a desflorestação.
         É uma mina inesgotável esta floresta! É de escolher do bom e do melhor, de tudo e com abundância. Na missão faz-se uma reserva para secagem dos troncos a fim de serem depois serrados. A carpintaria produz para nós, para as nossas missões e para vender a terceiros. Aqui encontram  emprego os rapazes que, tendo concluido a escola primária e não podendo entrar na escola secundária da missão, começam aqui, nesta espécie de escola de artes e ofícios, a aprendizagem, de cada especialização na arte de carpintaria. Somente assim se criam novos mestres que saibam bem do trabalho».
         Depois de alguns quilómetros disse ainda: «Aqui mora um amigo: o Chapotoka. É um branco. Os negros chamam-lhe assim porque é coxo. Mas esta palavra carrega também um pouco de ódio contra ele porque se zanga, grita, explora, ameaça, insulta… Faz os seus interesses!... Não é um missionário!
         Toma cuidado! É necessário ser calmo, paciente, aberto às necessidades da gente e, esta gente é pobre de tudo! Tem necessidade de tudo, tem as suas tradições, os seus costumes, as suas cerimónias… Eles, porém, sabem também como intrujar. Quem sabe, quantas vezes te virão dizer que lhes morreu a sogra ou a avó… É verdade! Pois, devido à poligamia podem ter várias sogras e avós mas, a algumas fazem-nas morrer mais vezes, porque têm necessidade de tempo para os seus interesses! Eles não se regulam pelos nossos ritmos; e se tu não os compreendes e te zangas com eles, fazem de ti um colonialista e acabas por ser odiado.
         Quando, porém, te apercebes de que, te intrujam, enfrenta os problemas com calma e paciência; adapta-te sem te fazeres prejudicar e mantém com firmeza os princípios a não transgredir. Querer-te-ão bem e, assim, os levarás aonde quiseres. E, querendo-te bem, poderás também  tu  zangares-te com eles. Aceitar-te-ão, te compreenderão e te perdoarão!»
Chapotoka não é assim. Mas é nosso amigo! Alguns dos seus filhos, brancos ou mestiços, estudam connosco na missão.       
         Tem uma criação de cerca de 2000 cabeças de gado. Em comparação desta o que é a criação de 250 bois da missão?! É ele que dá assistência técnica à nossa criação. Os rapazes podem comer carne duas vezes por semana e tomar leite em cada manhã. O que queres de melhor?»
         E Pró… perdoava tudo!
         Que tipo excepcional era Prosperino! Humano como um santo, audaz como um empresário, compreensivo e tolerante, ingénuo e impulsivo, conservador e inovador, resoluto, severo, essencial, meio ditador e meio democrata populista, amigo  desinteressado   e calculista, generoso e também um pouco ciumento… em suma: “um bom cristão”, um frade capuchinho!
E, às pessoas, aos operários e à gente, agradava um Prosperino assim. Até porque certas coisas demasiado bem consertadas, polidas, organizadas… estavam longe dos seus horizontes! Talvez se tivesse já “inculturado” ou, talvez fosse mesmo assim por natureza. E assim, lhe estava bem!
         Os dias se passavam, correndo com o nosso jeep de cá para lá e de lá para cá! Dizia: «Paramos...Vamos visitar esta ou aquela escola (…); vamos cumprimentar um amigo (…); vamos ver como vai a vida de um tal que chegou há pouco tempo da Metrópole, porque os seus compatriotas não o aceitaram…». Entretanto, carregava no jeep mais um outro passageiro que pedia boleia. «Pára, pois deve descer aquela senhora com a  criança...». O seu jeep era aquele do “bom samaritano” ou o do cireneu, pois a todos carregava com todas as suas coisas! Mas o maravilhoso de tudo isto é que se recordava, pontualmente, onde cada um devia descer, mesmo antes de eles baterem sobre o capô.
         Por fim, uma breve pausa em Mopeia, sua primeira missão, para cumprimentar os frades. «Mopeia não cresce, vive preguiçosamente; a sua história é lenta. As pessoas dormem, não reagem. Assim não gosto! Mopeia fez-me sonhar mas, não responde. Vamos embora»

Finalmente em Luabo: Fevereiro de 1972

         No Luabo encontramos frei Giuseppe Gaudioso de Bari, um ex-suboficial da marinha prisioneiro em França durante a 2ª guerra mundial, frade desde 1949. Missionário de longa data, tinha chegado a Moçambique com o primeiro grupo de missionários capuchinhos de Puglia a 4 de Maio de 1951. Contava já vinte anos de missão sobre as suas costas. Vinte anos de heroísmo. Não era um sacerdote, mas um irmão religioso que não tinha estudado muito. A vida porém, o tinha tornado sábio. A sua inteligência e o acentuado sentido prático tornaram-no útil à missão e serviçal na vida fraterna.
         Pró estava contente por ter chegado a casa. Com frei Giuseppe tinha um estranho relacionamento de empatia e de especial atenção. Giuseppe era um homem do qual se podia dizer que “não tinha papas na língua” e as suas observações eram agudas e perspicazes. Pró escutava-o! Quer um, quer outro estavam habituados à luta, a enfrentar de peito os problemas. Sobre muitas coisas não estavam de acordo e, então o confronto era aberto e serrado, respeitoso e genuíno. Porém, no fundo, ligava-os uma estima recíproca que se tornava amizade plena de atenções mútuas.
         Chegou a hora do almoço, um almoço magnífico que só frei Giuseppe sabia preparar para receber pela primeira vez, em casa, o novo Superior da missão e um novo confrade apenas chegado da Itália. Um almoço sonoro, rico de contentamento e pronta comunicação. Admirava-me sempre mais, ao notar que Pró era muito capaz de passar de um momento de sério confronto a um outro de brincadeira e chiste.
         Que tipo maravilhoso!
         Pró era uma daquelas pessoas das quais se podia dizer:  “é um bom garfo!” Comia de tudo com apetite e com gosto. Dava satisfação vê-lo à mesa! Era capaz de, com impertinência de criança, irritar frei Giuseppe, fazendo comentários sobre os seus cozinhados e atribuindo pontos sobre cada prato, a quantidade e a qualidade dos mesmos. Quando conseguia esgotar a paciência de frei Giuseppe, atingia o cume da satisfação, acabando numa gargalhada barulhenta que repunha todas coisa no seu lugar.
         De tarde tivemos um encontro de reflexão juntamente com frei Fedele, outro membro da fraternidade e primeiro conselheiro do grupo dirigente da missão. Debruçamo-nos sobre o novo projecto de missão a propor aos frades na carta programática para o seguinte triénio.
Pró  lançava tumultuosamente as suas ideias mas um tanto desordenadas, porém, segundo a sua sequência lógica, à qual era difícil suster o passo: a constituição de um fundo comum, ou seja uma espécie de caixa económica, na qual entrariam todas as ofertas; a complementaridade entre as missões; quer dizer: cada missão devia encontrar o seu específico campo de acção para aí desenvolver projectos, os quais poderiam depois vir a ser úteis também às outras missões; a evangelização a fazer, não mais como um anúncio abstracto e, nem tão pouco, como empenho de um só missionário, mas como acção de toda a fraternidade; a necessidade, para o missionário, de estudar e falar as línguas “bantu” da Zambézia.
         Já no fim, Pró deu-se conta de que devia ter posto por escrito quanto tinha no coração e na mente pois, desse modo, teria sido mais fácil organizar as ideias numa proposta dinâmica e participada. Surgiu então naquele momento um estilo de confronto de ideias, um envolvimento dinâmico e uma participação que Pró cuidava em forma persistente e sistemática, no debate das ideias e dos projectos, das propostas inovadoras e da realização comunitária das mesmas.
         De qualquer modo, todos entravam e se encontravam no programa, num estilo participativo das decisões que, não raramente, conduzia a um confronto vivaz com um percurso longo e lento, mas seguro e envolvente. Pró não  era, de facto, um carácter conciliador logo à primeira!
         A sua inteligência arguta e perspicaz e a sua dialéctica muitas vezes rodeante e forçada, levavam o grupo a aceitar escolhas e comportamentos que depressa influenciaram o nosso estilo de vida, mas também o de outros grupos missionários e o da própria Diocese.
         Esta sua maneira de propor e “empurrar” as ideias valeu-lhe a alcunha de “caterpiller” ou a de “proposta democrática… à qual não se podia dizer não!” 
         Frente a esta troça feita por todos nós, jovens frades, seus colaboradores, Pró explodia uma gargalhada sonora, alegre e contente porque, no fundo, se reconhecia bem no papel de “comandante” e,  bem sabia  que era um líder e um “arrastador”.
         Com frequência, este seu modo de ser, o fez cair em erros e bater o nariz contra a parede, causando-lhe desgostos, incómodos, mal entendidos e sofrimento; e também antipatias e suspeitas. Mas a grandeza do seu carácter estava em que, no momento oportuno, sabia entrar na discussão, reflectia, retornava ao confronto e à escuta. Não raramente, embora com muita fadiga, retirava as suas propostas e sabia pedir desculpa se o ímpeto ou ardor do confronto o tivesse levado a “passar sobre as razões dos outros”.
         Estes recursos humanos e cristãos tornavam-no amigo, sincero e singular, um frade humilde e digno, um Capuchinho corajoso, um sacerdote forte e doce, severo e misericordioso.